sábado, outubro 24, 2009

O nosso antepassado morto

Como os portugueses só gostam de escritores mortos e só os adoram depois de mortos, José Saramago resolveu dar uma de escritor morto.
Nem de outro modo se entende que tenha ressuscitado uma polémica completamente anacrónica. Não me parece que fosse apenas uma questão de marqueting, acho mesmo que é uma questão de personalidade...
A civilização ocidental, depois de ter colocado em causa a existência de Deus e a verdade das religiões durante quase dois séculos, entra agora definitivamente numa fase mística que é o resultado dessa pesquisa e simultaneamente do desejo humano da transcendência. Não se trata de uma atitude ingénua: muitos abandonaram a religião de origem e procuraram outras, de que se destaca o budismo, não o budismo "institucional", digamos assim, mas a essência dessa religião que não cede nada ao materialismo, à economia, etc. Muitos, como eu, desejariam acreditar no budismo, o que seria muito fácil se isso não fosse uma questão de fé, irremediavelmente perdida pelo materialismo e pragmatismo demasiado persistentes da religião católica. Dos quais não me parece que este Papa seja cúmplice.
Vejamos:
A certa altura, a religião católica quase que foi a votos: as pessoas não gostam disto, então mudamos aqui e mantemos o resto. Fez o que fazem as empresas: fingiu ser complacente para ser vendável, algo que este Papa tenta mudar. Resultado: muitos crentes "fanáticos" mudaram-se para religiões ainda mais rígidas, como a das testemunhas de Jeová, enquanto outros crentes se mudavam para o budismo, muitíssimo mais exigente, tornado-se, por exemplo, vegetarianos ou fazendo improváveis votos de castidade, sem que a sangria dos ateus irresolutos se tenha estancado.
Tudo isto resulta, naturalmente, do questionamento da religião católica, que desde há séculos se faz nas consciências, nas famílias, na sociedade. Mantiveram-se na religião os materialistas, outros que valorizam mais a tradição do que a a convicção e também os ateus, designando por esta palavra aqueles que não têm fé, mas também não lhes parece que isso seja grave. E alguns cristãos convictos, claro, que são, talvez, a minoria e que são muito "gozados" pelos outros.
A questão da Bíblia só é ainda questionável para os milhões de ignorantes que infelizmente existem, para os quais Saramago se vocaciona agora, numa patética tentativa de protagonismo. São muitos milhões no mundo inteiro, mais do que em Portugal, de que o escritor já entendeu a pequenez, passando-se para Espanha. Não imaginemos que Saramago se dirige ao punhado de crentes católicos portugueses, que não lhe interessa nada, obviamente.
Tive a percepção desse completo abismo, há uns anos atrás, ao tentar explicar a uma amiga que o Deus do Antigo Testamento é praticamente o oposto do referido na mensagem de Cristo, sendo um violento e vingativo, enquanto o outro é pacífico e fraterno. Polémica esta, que aconteceu há dois mil anos e que Saramago ressuscita como se se dirigisse a um público de analfabetos. A minha amiga, ateia católica pouco esclarecida e muito ignorante, cabou por argumentar que a Bíblia que lhe mostrei não era católica. Como de facto não era, ficou muito aliviada e esqueceu o assunto.
Deixo aqui, neste fórum, um desafio a Saramago: sendo hoje a questão religiosa e mística fundamental, o que acontece também ao nível da geopolítica, sugiro-lhe que ponha em causa a religião e as práticas religiosas muçulmanas, pois essa é a questão realmente actual, ao contrário da questão cristã, fartamente debatida pelos filósofos e escritores do Sec. XIX. E que se dedique à defesa dos direitos da mulher nessa religião e nos países que a praticam.
Para isso é que é preciso ter coragem! Não para criticar uma religião já questionadíssima pelos próprios crentes. E se corresse algum risco, não seria o de morrer jovem.

6 comentários:

jjoel disse...

Mantiveram-se na religião os materialistas, outros que valorizam mais a tradição do que a a convicção e também os ateus, designando por esta palavra aqueles que não têm fé, mas também não lhes parece que isso seja grave. E alguns cristãos convictos, claro, que são, talvez, a minoria e que são muito "gozados" pelos outros.

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Tive a percepção desse completo abismo, há uns anos atrás, ao tentar explicar a uma amiga que o Deus do Antigo Testamento é praticamente o oposto do referido na mensagem de Cristo, sendo um violento e vingativo, enquanto o outro é pacífico e fraterno.

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mais um exemplo da raquítica árvore a cuja sombra se recolhem hoje os portugueses a ingerir os palavrosos farnéis com que julgam alimentar o espírito.

Nadinha disse...

O JJoel, que acabo de conhecer, com prazer, tem uma página na net muito interessante.
http://www.jjoel.com/

C.M. disse...

Saramago, como "bom" estalinista, ataca com prazer a Igreja Católica. É esta que incomoda. O Islão, que oprime o homem e, em particular, a mulher, esse é deixado na sombra, não vá ele (Saramago)ser alvo de uma "fatwa", ordenando a sua execução...

Gi disse...

Parece-me uma boa proposta, Nádia.

Álvaro C. disse...

Boa noite cara amiga Nádia.

Eu compreendo a sua revolta por estarem a questionar algo em que acredita e não questionarem outras religiões na quais não acredita e condena. Eu como um bom cidadão aceito a sua opinião e sua crença, julgo que este assunto nem deveria ter tanto relevo como teve, mas não concordo com quem critica o Sr. Saramago, pois ele limitou-se a dar a sua opinião, tal como os cristãos dão sobre variadíssimos assuntos. O Sr. Saramago não disse mentira nenhuma ao dizer que a bíblia é um manual de maus costumes pois é verdade, a bíblia incita à violência, por isso é que hoje em dia assistimos a vários confrontos religiosos. Eu já passei pela experiência de dizer a um católico cristão de que era ateu, não sabia eu o que me esperava, pois estive quase uma hora a assistir a uma tentativa de me alterarem a opinião e quase converterem-me num dos seus. Foi um dos piores momentos já vividos na minha curta vida. Mas mais uma vez tive que aceitar a opinião daquela pessoa. Eu julgo que seria uma boa ideia também escrever sobre a religião muçulmana, mas também devo dizer-lhe que o Alcorão ou Corão como preferir, tem várias personagens bíblicas como são o caso de Abraão, Moisés, Jesus, Adão, Maria, Noé entre outras, logo a critica que é feita pelo Sr. Saramago podemos vir a entender como uma critica à religião e não a uma religião específica, pois eu como ateu critico não só a religião Católica Cristã, mas como todas as existentes, pois a religião incita à violência, é devido à religião que existem enumeras guerras por este mundo fora. Nós humanos não nos devemos esquecer da religião nos tempos monárquicos pois aí era a verdadeira religião, onde eram a classe mais medonha, mais rica e mais poderosa e tenho a certeza absoluta que se hoje continuássemos a viver sobre leis monárquicas a Inquisição, censura entre outros existiria. Mas devo dizer-lhe que gostei de ler o seu texto, pois mostra ser uma senhora informada e que tem uma excelente escrita. Só gostaria de acrescentar que este comentário não tem como objectivo ferir a sensibilidade de ninguém e que tem como único e exclusivo motivo demonstrar a minha opinião, pois acho que é bom para todos nós podermos trocar ideias.

Um abraço e a continuação de um bom trabalho neste blogue !

Nadinha disse...

Obrigada. Mas realmente ninguém disse em lado nenhum, julgo eu, que Saramago não tem o direito de dizer o que quiser. O que acontece é que nós também temos.
Está enganado quando me julga uma católica convicta, sou uma pessoa à procura da religião e a que me parece melhor é a budista. Se fosse religiosa, seria budista.
Não concordo consigo quando diz que as religiões fomentam as guerras, quem as fomenta é o poder, que pode estar, ou não, relacionado com a religião.
E é preciso ver a evolução que tem havido, desde a aceitação cega até uma procura, muitas vezes um questionamento desesperado, que talvez até seja o caso de Saramago.
Aprecio muito os livros deste autor, mas realmente gosta de atacar e logo a a seguir armar-se em mártir... ninguém o pode criticar nem discordar, deveríamos mudar de ideias???????????