sábado, agosto 04, 2012

Vidas: O Diogo


Sinto às vezes, ao passar numa parte menos frequentada das Amoreiras, uma certa nostalgia, não um sentimento de tristeza pessoal, mais, talvez, uma sensação de pura compaixão. 
Foi lá que a minha grande amiga Vitória me contou os factos que vou narrar, poucos meses antes de morrer, subitamente. Ela teria, no máximo, uns 60 anos... hoje em dia é considerado cedo, portanto.
Encontrámo-nos por acaso nas Amoreiras, vi que estava desanimada (não era pessoa de mostrar o que sentia)  e fomos, por escolha dela, àquele café a que eu nunca tinha ido, nem voltei.

Essa mulher teve sempre uma grande paixão por uma primo da mesma idade, O Diogo. Pela parte dele, militar de carreira e muito conservador, marialva, era difícil de entender o que sentiria, mas nunca casou e voltava para ela, de vez em quando. Nunca tiveram filhos... por causa dessa inconstante relação e dos vários abortos, frutos também dessa inconstante relação e da imprevidência dos dois.

E então ela contou-me, com uma tristeza que tentava disfarçar, sem necessidade de a exprimir nem muito menos de a dissimular, pois eu poderia imaginar o que sentia, visto que éramos amigas.

O Diogo era muito "forreta". Poupava de tal maneira, que nem comprava medicamentos analgésicos para a mãe, que lhos pedia e implorava, muito menos para ele mesmo. Juntou muito dinheiro. Depois de passar à reserva, decidiu ir viver para a aldeia onde tinha nascido. Tinha uma casa com um grande quintal nas traseiras, pomar e horta. Quase não comprava nada, consumia o que cultivava. Não se dava muito com os vizinhos, vinha raramente a Lisboa, a minha amiga estava encarregada de lhe tratar das questões logísticas da casa na capital.

A certa altura, deixou de ter contacto com o Diogo. Telefonou, mas não conseguiu falar com ele... também, não era pessoa de se preocupar muito... nada dramática... esperou para ver o que acontecia.

Veio mais tarde a ser informada: encontraram o corpo do Diogo no seu quintal, morto há cerca de um mês, parcialmente comido por cães. O quintal estava murado a toda a volta, o que explica que tenha caído e não tenha sido encontrado. Os cães ficaram malditos para sempre, pois numa aldeia, até os animais têm reputação, vivos ou mortos.


A Vitória foi ao funeral. Como o Diogo não se deu ao trabalho de fazer testamento, os únicos herdeiros eram uns parentes e respetivos filhos. Com quem não se dava. No funeral, como é natural, estavam felicíssimos, pois iam herdar o dinheiro poupado com grande sacrifício, numa vida pouco vivida, sem alegria nem consolo. Com muita dor, não mitigada por analségicos, por serem caros. Afirmavam:

- Já morreu tarde. Eu mal podia esperar para ganhar aquele dinheiro todo.
- Foi pena o tipo não ter morrido há 5 anos, quando eu precisava tanto de dinheiro... mas agora também, faz cá um jeitaço!

Vi a tristeza e o desânimo invadirem o rosto e o olhar da minha amiga, enquanto me narrava estas e outras frases que tinha ouvido no funeral do seu amante de toda a vida, usando o discurso direto, saborendo sem  prazer um café que foi arrefecendo. Um café adocicado, mole, morno de tanto esperar e insípido. Como a sua mesma existência .

Poucos meses depois, a nossa mulher-a-dias comum ligou-me para o telemóvel, estava eu a trabalhar. Informou-me de que a minha amiga tinha morrido. Subitamente, durante a noite. Sozinha em casa.

Hoje, dia 4 de Agosto, faria anos, mas já não faz. Há quantos anos já não faz anos? 3,4,5?

Que importa o calendário? No seu último aniversário telefonou-me para casa, mas eu estava algures no estrangeiro, talvez no Brasil, nas Canárias, ou no mar. 

Nunca fixei datas, raramente me lembro de um aniversário...

(Os nomes são fictícios, de resto, é tudo verdade. Talvez mostre um pouco o que é a sociedade portuguesa contemporânea, o materialismo, o culto dop dinheiro, o modo de transmissão da riqueza, etc.)

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