terça-feira, fevereiro 08, 2022

A matança do porco

O que vou contar aconteceu várias vezes, durante a minha infância e está gravado na minha memória em pensamentos, sons, cheiros e, finalmente, sabores.
Havia um dia em que eu acordava, de manhã bem cedo, com guinchos estridentes. Guinchos de cortar a respiração, de furar os tímpanos, guinchos de um ser que quer agarrar-se à vida, gritos cada vez mais ténues, cada vez menos estridentes, depois já só um sopro…
Prestando atenção, totalmente acordada apesar da madrugada, eu sentia uma enorme energia por todo o lado, uma grande azáfama nas duas casas (a nossa e a do meu avô, muito próximas), um sentido do dever, sim, mas também uma indisfarçável alegria, uma expectativa de prazer. De todos, mas sobretudo de quem, como eu, não iria fazer nada, iria apenas observar e usufruir.
Era a matança do porco, como vocês já devem ter entendido.
Quando o silêncio, enfim, se instalava, havia um cheiro adocicado de queimado, estavam a queimar com fogo a pelagem do bicho. E logo um cheiro a sangue e a carne crua. O dia era longo e terminava com uma grande jantarada das duas casas, mas ainda não era a refeição principal, que teria convidados. Neste dia ainda eram só as “papas de sarrabulho”, acompanhadas com o sangue solidificado e cozido, a que o meu avô acrescentava açúcar, o único que o fazia. As papas eram verdes, enverdecidas por algum legume, não me perguntem pormenores, só recordo as sensações. Creio que também havia rojões de redenho, uma coisa esquisita. E no dia seguinte, então sim, a rojoada, uma festa dos sentidos e da comunicação familiar, em que o matador, com as suas enormes facas, era o herói.
Até aquele primeiro momento, o porco tinha sido criado quase como animal de estimação, embora nos fossem contadas histórias exemplares de bebés que foram comidos pelos porcos, era preciso ter cuidado… era amigo, mas também inimigo, não como se fosse gente…
Era assim.
Era assim, quando o homem ia buscar o seu alimento à natureza, às coisas e aos bichos. Mas não passava pela cabeça de ninguém dar um nome ao porco.
E muito menos lhe dariam um nome de gente.

Graciete Nobre

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