sexta-feira, março 02, 2018

Oh, Como era bela, a miséria!







Hoje em dia, já não há jumentinhas, muito menos moleirinhas. Tanto que, o corretor ortográfico nem considera que existam essas duas palavras.
Felizmente, nos países europeus nossos conhecidos, já nem existe miséria, no verdadeiro sentido da palavra. Não há velhinhas muito velhas a arrastarem-se pelas estradas e caminhos da terra. O que nos leva a estarmo-nos nas tintas para os outros continentes.

A não ser quando visitamos países remotos: que giras aquelas aldeias de palha sobre rios e lagos, com um gentinha a comer peixes quando os há... ou no cume das serras, casas tão pequeninas e tão giras!

Que giro!


A Moleirinha 


Pela estrada plana, toc, toc, toc, 
Guia o jumentinho uma velhinha errante 
Como vão ligeiros, ambos a reboque, 
Antes que anoiteça, toc, toc, toc 
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!... 

Toc, toc, a velha vai para o moinho, 
Tem oitenta anos, bem bonito rol!... 
E contudo alegre como um passarinho, 
Toc, toc, e fresca como o branco linho, 
De manhã nas relvas a corar ao sol. 

Vai sem cabeçada, em liberdade franca, 
O jerico ruço duma linda cor; 
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca, 
Tange-o, toc, toc, moleirinha branca 
Com o galho verde duma giesta em flor. 

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta, 
Toc, toc, toc, que recordação! 
Minha avó ceguinha se me representa... 
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta, 
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!... 

Toc, toc, toc, lindo burriquito, 
Para as minhas filhas quem mo dera a mim! 
Nada mais gracioso, nada mais bonito! 
Quando a virgem pura foi para o Egipto, 
Com certeza ia num burrico assim. 

Toc, toc, é tarde, moleirinha santa! 
Nascem as estrelas, vivas, em cardume... 
Toc, toc, toc, e quando o galo canta, 
Logo a moleirinha, toc, se levanta, 
Pra vestir os netos, pra acender o lume... 

Toc, toc, toc, como se espaneja, 
Lindo o jumentinho pela estrada chã! 
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja, 
Dá-me até vontade de o levar à igreja, 
Baptizar-lhe a alma, prà fazer cristã! 

Toc, toc, toc, e a moleirinha antiga, 
Toda, toda branca, vai numa frescata... 
Foi enfarinhada, sorridente amiga, 
Pela mó da azenha com farinha triga, 
Pelos anjos loiros com luar de prata! 

Toc, toc, como o burriquito avança! 
Que prazer d'outrora para os olhos meus! 
Minha avó contou-me quando fui criança, 
Que era assim tal qual a jumentinha mansa 
Que adorou nas palhas o menino Deus... 

Toc, toc, é noite... ouvem-se ao longe os sinos, 
Moleirinha branca, branca de luar!... 
Toc, toc, e os astros abrem diamantinos, 
Como estremunhados querubins divinos, 
Os olhitos meigos para a ver passar... 

Toc, toc, e vendo sideral tesoiro, 
Entre os milhões d'astros o luar sem véu, 
O burrico pensa: Quanto milho loiro! 
Quem será que mói estas farinhas d'oiro 
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!


Guerra Junqueiro
 (1850 - 1923) 
(Do livro de leitura da 4ª classe de 1951)


Este vídeo tem alguma graça...



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