domingo, junho 07, 2020

Diário da quarentena e do desconfinamento: a eficácia que se avaria

Fúrias

Escorraçadas do pecado e do sagrado 
Habitam agora a mais íntima humildade 
Do quotidiano. São 
Torneira que se estraga atraso de autocarro 
Sopa que transborda na panela 
Caneta que se perde aspirador que não aspira 
Táxi que não há recibo estraviado 
Empurrão cotovelada espera 
Burocrático desvario 

Sem clamor sem olhar 
Sem cabelos eriçados de serpentes 
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia 
Elas nos desfiam 

Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno 
Sem rosto e sem máscara 
Sem nome e sem sopro 
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria

Já não perseguem sacrílegos e parricidas 
Preferem vítimas inocentes 
Que de forma nenhuma as provocaram 
Por elas o dia perde seus longos planos lisos 
Seu sumo de fruta 
Sua fragrância de flor 
Seu marinho alvoroço 
E o tempo é transformado 
Em tarefa e pressa 

A contratempo. 

Sophia de Mello Breyner

Sem comentários: