Acabo de ler, com entusiasmo e alegria, o relato de um naufrágio no Pacífico, o livro "Tão Longe do Mundo". Quase não consegui parar de ler, o que é estranho, dada a aparente monotonia do tema: um homem à deriva no Pacífico durante quatro meses, 180 dias. Mesmo contando com a minha paixão pelo mar (que não pela praia, de que não gosto) e pelas navegações, o mérito da narrativa deve-se, em grande parte, ao jornalista que ouviu este pescador e que escreveu o livro, como se fosse ele o autor e o protagonista.
Estes pescadores do Thaiti eram considerados os "Senhores do Mar" e estão agora em extinção absoluta pela globalização que, neste caso, se deve sobretudo às experiências nucleares em Samoa, a pior de todas as globalizações. Onde esperávamos encontrar o Paraíso, surge-nos o pesadelo, num lugar escolhido de propósito por ser remoto e longínquo.
Devido a uma avaria no motor, Tavae vê-se arrastado pela corrente marítima para longe da ilha onde vive e onde tem filhos e netos, tendo sobrevivido miraculosamente por efeito de dois ou três factores: a sua extraordinária experiência do mar e a invulgar perícia de navegação, que lhe permitem enfrentar uma tremenda tempestade, durante a qual partiu as costelas, (mas não o pequeníssimo e desprovido barco, ficando também com as pernas paralisadas), alguma sorte, se assim lhe podemos chamar, por ter chovido torrencialmente quando estava a morrer de sede, (não de fome que conseguiu sempre pescar), mas sobretudo à sua incrível e indestrutível fé em Deus. Este é um dos aspectos mais interessantes do livro, pois o protagonista interpreta todos os acontecimentos invulgares que presencia, como o aparecimento dos pássaros, das orcas, da tempestade, pensando que se trata de sinais que Deus lhe quer transmitir.
Tal como pensam outros invejáveis crentes, talvez de entre os mais simples, dir-se-ia que Deus nem tem mais em que pensar senão no modo de pôr à prova este seu fervoroso seguidor, num diálogo íntimo que "mantêm". As narrativas míticas, politeistas, são um lenitivo para os momentos em que nada acontece e isto deve-se ao jornalista co-autor. Aqui, Tavae recorda a origem da ilha e outros pormenores, em que os deuses são as personagens principais. Mas talvez seja desta religião primitiva que o protagonista retira a intimidade com Deus, mais improvável na austeridade do catolicismo... em que fomos criados... Tal é a crença nos desígnios divinos, que Tavae decide ir viver para a ilha onde acabou por aportar, vivo devido à sua perícia, a mil quilómetros da sua terra, mas só depois de casar a filha que faz anos no dia da sua "aterragem". Também porque os habitantes da ilha, que tão bem o acolheram, incluindo a "família real", achariam estranho se ele se fosse embora para sempre... até porque reencarna um dos seus mitos/deuses.
Fez-me lembrar um livro que foi marcante na minha primeira juventude:
"Náufrago Voluntário", com a vantagem de tudo ser natural e espontâneo neste livro que agora acabo de ler, reservando a intenção de reler com frequência algumas passagens.
O mar, a última fronteira, pode colocar-nos em contacto com o mundo, com a nossa essência e com o milagre quotidiano da existência.
(Pormenor curioso, o livro custa 2,50 Euros, Editora Bizâncio.)
Comprado no novo e muito interessante "Espaço Docas", nas Docas de Alcântara.
1 comentário:
Adorei o seu testemunho. Quanto ao preço do livro, sou de opinião que se os livros tivessem um preço justo, não havia tantas fotocópias, detesto fotocópias. Vou procurá-lo para o ler também. Obrigada pela partilha
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