segunda-feira, junho 29, 2020

Diário do confinamento e do desconfinamento: o amor à vida






Quando eu comecei a trabalhar, há muitos anos, já nesse tempo como professora, partilhei uma casa alugada com várias amigas, algumas delas médicas. Umas iam saindo e outras entrando, pelo que foram várias.
Uma delas era muito sensível e muito preocupada. Um dia chegou a casa debulhada em lágrimas e deixou-mea mim ainda mais de rastos. O caso não era para menos.
Um dos seus doente, ela era boa e trabalhava com um cirurgião apesar de estar a começar, já não tinha pernas nem braços, mas, para poder sobreviver, deveria ainda ser submetido a uma intervençãp em que lhe tirariam mais um bocado do pouco que tinha nos membros inferiores. 
O pior foi que ela, médica, tinha desatado a chorar na frente do doente,, com pena dele. Choramos as duas abraçadas, muitas vezes, com pena do homem...
Mais tarde, tive de lhe confessar: não aguentava mais aquelas confidência: eu já não dormia, já não conseguia pensar noutra coisa, eu não estava preparada para ouvir aqueles casos, nunca me teria passado pela cabeça escolher ser médica, o meu trabalho como professora estava longe de ser fácil eu detestava-o, pensava mesmo em desistir do ensino, etc... 
Enfim, deixamos de falar sobre esse assunto, claro.
Um dia, ela veio ter comigo e sentou-se na minha cama, mais abismada ainda do que antes e fez questão de me contar tudo o resto...
Embora a Maria tenha rezado para que o doente morresse durante a operação, a que ela tinha assistido como ajudante do ortopedista, quando o homem acordou, mostrou-se muito feliz por estar vivo e anunciou que se ia casar! 
O médico cirurgião, mais velho, explicou-lhe que só um imenso desejo de viver tinha permitido que aquele homem sobrevivesse. E que aquela situação não era assim tão rara.
Se compararmos esta história com outras, de pessoas aparaentemente felizes, saudáveis, belas e ricas que se suicidam, devemos constatar que não somos todos iguais. 
E, sobretudo, que não importam nada os detalhes.... 
Será que aquela pessoa se suicidou porque tinha problemas económicos? Será que ninguém a amava? Estaria muito doente? 

Enfim... A vida chama por nós. Talvez mais por uns do que pelos outros. Uns respondem, outros não.

sábado, junho 27, 2020

Diário da quarentena e do desconfinamento: perseguir bandidos ou confinar entre 4 paredes?




Numa pequena terra do Norte (de Portugal), um homem de idade com Covide foi mandado para casa, ou quis ir , devendo ficar em confinamento.

Como vivia sozinho numa casa isolada, rodeada de campos e de bosques que lhe pertenciam, andava pelos campos e pelos bosques, muito longe dos habitantes mais próximos. Estes últimos, armados em Big Brother, telefonaram à guarda, muito indignados.
A guarda, naturalmente, ligou as sirenes e as luzes e foi a grande velocidade, como se andasse a perseguir traficantes em Manhattan, assarapantando a pacata população. Para obrigar um senhor de 93 anos a ficar confinado entre paredes. Emparedado até à morte, pois morreu pouco depois.

quarta-feira, junho 17, 2020

Diário da quarentena e do desconfinamento: quebrar estátuas






A primeira vez que vi a estátua do Padre António Vieira foi na notícia de que tinha sido vandalizada, pouco depois de ter sido inaugurada (em 2017), já na altura pelo mesmo motivo.
Fiquei chocada ao vê-la, como depois quando a vi em presença.
Quem é que tem o mau gosto de fazer uma escultura de homenagem, representando um padre com crianças nuas, nesta altura em que tanto se fala da pedofilia de padres católicos? 
Como é que se escolhem os artistas e que liberdade é esta de fazerem o que lhes dá na bolha? O artista não se lembrou disso? Ou teve alguma intenção esquisita? Estará a gozar connosco? Não dá vontade de a deitar abaixo?
Isto, para nem mencionar a mensagem arrogante da grande superioridade católica sobre a cultura dos índios, aqui infantilizados, estando os índios simbolizados por crianças e nós, portugueses, por um ser muito superior.

Vieira realizou muitos projetos, trabalhou intensamente e viveu muito tempo, não apenas como missionário nos confins do Brasil de então, mas também na política portuguesa, como embaixador de Portugal na Holanda, para negociar a parte do Brasil que os Holandeses tinham conquistado a Portugal durante a ocupação espanhola. 
Nessas época, torna-se confessor da rainha Cristina da Suécia, em Roma e dizem mesmo que houve uma paixão amorosa entre eles.
Houvesse ou não, Vieira recusou essa vida "regalada" e voltou para Portugal, regressando mais tarde para o meio dos índios.
Em Roma, tinha sido muito apreciado como intelectual, como pensador, como escritor e poderia nunca de lá ter saído.
Talvez o escultor para uma estátua de Vieira devesse ser alguém com experiência de vida. E com juízo.


P.S.: Quando está tudo metido em casa, não é difícil quebrar estátuas...

(Imagens retiradas da Internet)

Diário da quarentena e do desconfinamento: As máscaras e a Santa Inquisição



A nossa sociedade, que teve a Inquisição durante séculos, ainda tem um pendor muito inquisitorial, sobretudo em Lisboa. Foi a primeira impressão negativa que tive quando vim para cá, há muito tempo, é a impressão que continuo a ter.
Isto nota-se muito agora, desde que, a partir de um determinado dia, se tornou obrigatório o uso de máscara. A partir do minuto zero desse dia, cai tudo em cima de quem não tem máscara, ou a esqueceu, ou a tem colocada abaixo do nariz...
Isto não vai desaparecer em breve, porque as pessoas adoram controlar-se umas às outras. 

Até agora, não tinham pretexto, agora têm.

Por outro lado, quando, em Lisboa, vemos uma muçulmana de rosto tapado (aliás, não vemos, as pessoas de outras culturas não se atrevem  usar aqui os seus trajos, ainda bem no caso das muçulmanas) logo receamos as consequências de alguém andar na cidade de rosto tapado e de identidade desconhecida. 
Mas tudo muda quando o problema nada tem a ver com diferentes culturas, claro.

terça-feira, junho 09, 2020

Diário da quarentena e do desconfinamento: continuem a espalhar o terror, please!




Agora, que muitas pessoas passam horas frente  o televisor a ver e ouvir notícias de terror sobre o coronavírus, surge também uma curiosa notícia: no rio Douro, em Espanha, está um crocodilo do Nilo, perigosíssimo e pesando 250 Kgs. Enorme!!!!
Querem ir para as praias fluviais? Olhem que o crocodilo rapidamente vem de Espanha para Portugal! 
Lá fora, fora de casa, é um lugar perigoso.
Embora os jornalistas, os jornais, as televisões, as rádios onde trabalham adorem veicular estas notícias, há sempre um basta!
"Basta Pum! Basta!" - no dizer de Almada Negreiros.
Então, parece que afinal, em vez do crocodilo horrendo, era só uma lontrinha querida. Com um peso  que oscila entre os 8 e os 18 Kgs... e com um arzinho doce... 
Só têm uma coisa em comum: o homem tira-lhes pele, para a usar.

Continuem a espalhar o terror, please! We love that!!!!
(Fotos retiradas da Internet) 

Diário da quarentena e do desconfinamento: alguém espera ficar cá para sempre?



Existe a ideia de fazer um passaporte para quem já teve o Covid 19, ou para quem passou num teste de imunidade. essas pessoas poderiam ir a todo o lado, mesmo em caso de nova quarentena.
Vem logo alguém dizer que nada disso conta, quem já teve pode voltar a ter, etc…
A OMS afirma que os assintomáticos não constituem perigo, pois não contagiam, vem logo uma criatura, médico, investigador, jornalista dizer que os assintomáticos são perigosíssimos. 
Alguém aguenta isto? 
A culpa é dos confinados por vocação, que dão ouvidos a esta gente e que permitem todo o tipo de lavagem ao cérebro. A eles e a todos.
Vamos tentar vivera nossa vida sem o terror das doenças? 
Todos podemos morrer. De susto, de medo, de tédio, de gripe, de coronavirus, de acidente, afogados na praia, de terramoto com o telhado em cima da cabeça…
Alguém espera ficar cá para sempre? Não? 

Então, coragem!

domingo, junho 07, 2020

Diário da quarentena e do desconfinamento: a eficácia que se avaria

Fúrias

Escorraçadas do pecado e do sagrado 
Habitam agora a mais íntima humildade 
Do quotidiano. São 
Torneira que se estraga atraso de autocarro 
Sopa que transborda na panela 
Caneta que se perde aspirador que não aspira 
Táxi que não há recibo estraviado 
Empurrão cotovelada espera 
Burocrático desvario 

Sem clamor sem olhar 
Sem cabelos eriçados de serpentes 
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia 
Elas nos desfiam 

Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno 
Sem rosto e sem máscara 
Sem nome e sem sopro 
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria

Já não perseguem sacrílegos e parricidas 
Preferem vítimas inocentes 
Que de forma nenhuma as provocaram 
Por elas o dia perde seus longos planos lisos 
Seu sumo de fruta 
Sua fragrância de flor 
Seu marinho alvoroço 
E o tempo é transformado 
Em tarefa e pressa 

A contratempo. 

Sophia de Mello Breyner