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quinta-feira, outubro 09, 2014

Eu disse-te para tu pores o pé em cima do dinheiro! Eu disse-te para tu pores o pé em cima do dinheiro!

A mulher, nos seus cinquenta mal conservados, encarquilhados, ainda que com alguma jovialidade no vestir e na atitude, chorava copiosamente do olho negro e ao mesmo tempo gritava com o rapaz, numa voz aguda e lamentosa, repetindo sempre a mesma frase, ainda que em diferentes tons: 

- Eu disse-te para tu pores o pé em cima do dinheiro! Eu disse-te para tu pores o pé em cima do dinheiro! 

Já se tinha juntado muita gente a ouvir aquele monótono refrão, quando passei. Mas mais ou menos discretamente, como é costume agora em Lisboa... fingindo que tinham parado ali por acaso, a conversar com um conhecido...

O polícia, um rapagão atlético, ultrapassava de vários dedos e de vários pés a estatura das duas figuras franzinas. Não dava demonstrações de autoridade, de força ou de persuasão, não empunhava arma e sim telemóvel, parecia que iam os três a passear por ali. Os outros dois nem tentavam fugir, mas a mulher insistia, aos guinchos cada vez mais estridentes e com mais lágrimas a sair do olho negro, ou com lágrimas mais visíveis no olho negro do que no outro:

- Eu disse-te para tu pores o pé em cima do dinheiro! Eu disse-te para tu pores o pé em cima do dinheiro! 

 E a certa altura acrescenta uma variante:

- Eu disse-te para tu pores o pé, mas era em cima do dinheiro! 

Prossegui caminho. O truque para continuar ali seria meter conversa com alguém e fingir que tinha encontrado um amigo, em cada esquina um amigo... e ficávamos ali a ouvir e a ver, meio voltados para a cena, meio voltados de lado...

Mas eu já tinha percebido tudo: os dois estavam a  vender droga.  Quando aparece o rapagão polícia, a mulher manda deitar tudo para o chão. O jovem, inexperiente, atira tudo, incluindo o dinheiro.

É então que a mulher lhe diz para pôr o pé por cima. Era evidente para ela: por cima do dinheiro. Mas ele pensou que a droga era mais valiosa do que duas ou três notas de 10 Euros, portanto pôs o pé em cima da droga.

Para gente sem poder algum de argumentação ( incluindo o rapagão polícia), o caso é simples: pôr o pé por cima de algo é o mesmo que tomar posse desse algo. O rapaz teria tomado posse do dinheiro se pusesse o pé em cima do dinheiro, mas em vez disso tomou posse da droga, porque pôs o pé em cima da droga.
E foram ambos presos.

- Eu disse-te para tu pores o pé em cima do dinheiro! - chorava a mulher, com lágrimas no olho negro.


quarta-feira, janeiro 15, 2014

LOL Assalto verdadeiro, que parece anedota

Uma minha amiga anda deprimida e triste por causa de um assalto que lhe fizeram em casa. Mas o que mais a entristece é toda a gente se rir às gargalhadas quando ela começa a contar a história.
Então, vejamos o que sucedeu. A senhora foi jantar fora com toda a família, deixando em casa os vários gatos que tem, as tartarugas e o cão Dobermann de um amigo, um cão treinado que sabe fazer muitas coisas. Enorme.

Quando regressou a casa, já tarde da noite, reparou que as luzes estavam todas acesas e que havia um homenzarrão espapaçado no sofá da sala, a ver televisão e a ler revistas. Neste ponto da narração, indignada, ela exclama:
- Sentado no meu sofá, recostado nas minhas almofadas, a ler as minhas revistas - profere, acentuando muito o i da palavra "minhas".
Furiosa, entra pela porta dentro, sem pensar sequer em ter medo e, logo no hall, ouve um outro homem a gritar por socorro dentro da despensa. Vai ver o que é... é o outro ladrão.

O que se passou, então, foi que o cão usou todas as técnicas que lhe foram ensinadas e não os deixou sair. O da despensa teve medo e escondeu-se, o outro aproveitou para ver televisão e ler revistas, enquanto esperava que a dona da casa viesse enxotar o bicho e libertá-los.

Uma vizinha chamou a polícia, que os revistou e os levou para a esquadra. Isto porque a minha amiga, de tão zangada, só protestava e nem lhe passava pela cabeça fazer mais nada. Por isso e porque é professora, habituada a ralhar em vão, sem fazer mais nada que não seja ralhar...
E , de repente, pasa-se e desata aos pontapés ao rapaz, arranhou-o o todo, não com as unhas, que tem cortadas, mas talvez com so anéis.

No dia seguinte foram todos presentes à juíza de instrução, a qual teve muita pena dos dois homens, afirmando que eram inimputáveis e que, lamentavelmente, não havia ninguém que se preocupasse com eles.
- A culpa é sua, que tem uma casa grande demais e com três portas para a rua, uma tentação para os assaltantes!
A minha amiga irritou-se muito com isto, respondeu iradamente e foi logo acusada de desrespeitar as autoridades.
- Você até teve muita sorte por eles não estarem armados - continua a  juíza.
- Não é bem assim, senhora doutora juíza, - respondeu ela, procurando falar calmamente - porque eles até destruíram o meu lava loiças com uma grande faca de ponta em mola, mas, ao fugirem do cão, deixaram-na cair ao chão e ela ficou na  cozinha. E também destruíram tudo que eu tinha na despensa, incluindo a  comida dos meus gatinhos, que espalharam por todo o lado. Tenho a casa toda imunda e fiquei sem mantimentos.
Neste momento, a juíza chama a empregada doméstica para lhe perguntar se ela não costuma usar aquela faca de ponta em mola para cozinhar!
- Claro que não, senhora doutora juíza! Então a senhora doutora juíza acha que alguém usa uma faca de ponta em mola para descascar batatas?
Vencida mas não convencida, a magistrada insiste:
Você é uma mulher violenta. Coitado do rapaz, que ficou todo arranhado! Ele vive à custa de 365 Euros que o estado lhe paga por mês! Coitadinho! E muita sorte teve você por não terem sido reportadas armas de fogo! Senão, até podia ter morrido!

É então que o principal "suspeito", aquele que estava na sala, tira uma pequena pistola do bolso de trás das calças e diz:

- Eu, por acaso, até tenho aqui a minha canhólas!

Estupefacta, a minha amiga levanta-se, e, dirigindo-se ao polícia, pergunta-lhe, fora de si:
- Então o homem passou a noite toda na esquadra, com uma  pistola no bolso? Então e o senhor, quando o revistou, como é que não viu uma pistola? No bolso!!! Uma canhólas???

- Eu ver vi - Responde o polícia, mas é que me pareceu uma pistola de plástico, daquelas de brincar... Nunca me passou pela cabeça que aquilo fosse uma pistola a sério!!!

Nova gritaria da minha amiga, furibunda, danada, fora de si, que é novamente acusada de desrespeito às autoridades e ameaçada.
- Eu vou fazer queixa de si! Ouviu?!!! - Diz ela.
- Se fizer queixa deste senhor polícia, a senhora vai ser responsável pela perda de mais um posto de trabalho, neste nossa sociedade em crise. Não se sente culpada? - Pergunta a juíza.

- Culpada? Eu???!!!

E assim acabou o inquérito e lá foram todos, muito descansados, para suas casas, incluindo os dois assaltantes, que saíram em liberdade.

Só a minha amiga é que está bastante arranhada, porque um dos seus muitos gatinhos teve medo do cão e dos ladrões e voltou-se contra ela. Esgadanhou-a toda, nos dois braços, que ficaram em ferida e em sangue. Mas ela defende-o:

- Coitadinho do gatinho, teve tanto medo!!!

Vejo-a de longe. Evita as pessoas, fica sozinha e ensimesmada, ostentando um ar infeliz, desorientado, acabrunhado. E tem razão. Qualquer um de nós se sentiria da mesma maneira, se estivesse no lugar dela!

Só se riu pela primeira vez, quando eu lhe consegui despertar o sentido de humor, já muito embotado e esquecido. Só quando eu lhe pedi que contasse a história, pela terceira vez consecutiva, a outras pessoas, é que desatou, finalmente, a rir às gargalhadas. Apesar da dor das arranhadelas.
É o bem de conviver com muita gente!


Cenas dos próximos capítulos (tudo em verdade): A minha amiga, que nunca falta o trabalho, faltou duas vezes uma porque foi assaltada, outra porque é chamada para assinar um documento, segundo o qual, o caso foi arquivado.
No dia seguinte, os dois rapazes assaltaram um aoutra casa, foram presentes a um outro juiz de instrução, um homem, que os considerou culpados.
E por esse motivo desencerrou o processo que tinha sido encerrado.

terça-feira, dezembro 31, 2013

A MISSA DO GALO (CONTO)


(Este conto será retirado do blogue, em breve. E será melhorado, também)


José Aparecido nunca tinha vindo a Portugal, mas conhecia o avô. Sobretudo de ouvir falar dele, claro. Sempre a dizerem que era um velho duro. E uma vez, o velho tinha mesmo ido a Champigny. Ficou por lá alguns dias, mas sempre a resmungar por tudo e por nada. Perdia-se nas ruas, era preciso ir procurá-lo… criticava tanto a casa da filha, uma vivenda grande e bem arranjada, que Aparecido se convenceu. A casa do velho deveria ser muito boa. E foi por isso que resolveu vir passar uns meses a Portugal, enquanto não se resolviam umas chatices que tinha tido, umas dívidas, umas zangas, uns ameaços… enfim, tudo para esquecer.
Afinal, a casa do velho era um pardieiro mais velho do que ele, quase a cair, com telhas que deixavam entrar água da chuva, à beira dum ribeiro, naquela aldeola onde o Judas perdeu as botas. Um frio de rachar e o velho não tinha outro aquecimento que não fosse a lareira. Só uma lareira para a casa toda, com  a lenha muito racionada porque era muito poupado. Avarento. Ainda por cima era ele, Aparecido, quem tinha de rachar os troncos das árvores e de carregar com as achas pelas escadas acima. Parecia mal dizer que não e mandar o velho fazer isso, claro.  Embora fosse um trabalho que o avô costumava fazer todos os dias, sem nunca se queixar. Velho rijo! Quem me dera ser assim quando tiver a idade dele, dizia a mãe, quando não se queixava da maneira como tinha sido tratada em pequena. Mas eram outros tempos, dizia ela, não se dava à canalha o mimo que se dá hoje em dia…
Aparecido já estava mais que farto daquela casa, daquela parvónia, da forretice do velho, dos raspanetes que estava sempre a apanhar. Ia-se embora, não estava para aturar aquilo, só ainda não tinha ido por a mãe lhe pedir que ficasse até ao Natal. Não deixes o teu avô sozinho na noite de Natal! Por isso, claro, sobretudo por isso, mas também porque lhe dava jeito ficar mais uns tempos, ia ficando… ia aturando aquilo, em troca de cama, mesa e roupa lavada, se a lavasse ele, claro.
Mas o pior era o galo.
Era um galo enorme, de penas compridas e avermelhadas, com uma crista enorme, como para se ver bem que não era uma galinha, bem, para quem sempre viveu na cidade, perto de Paris, na banlieue parisienne, não era assim tão fácil distinguir uma galo de uma galinha, mas parece que o animal já sabia disso e já tinha tratado de todos os pormenores, para que não houvesse engano possível. E andava sempre rodeado pelas galinhas, de dia. De noite, punha-se a cantar, a cantar, até lhe parecia a ele, Aparecido, que o bicho estava empoleirado nos ferros da cama velha e desengonçada, ali mesmo ao pé. Uma cama que também gingava e gemia, num ruído de metais raspados uns contra os outros, de todas as vezes que o rapaz dava voltas na cama. E não eram poucas.
-Ó avô, então os galos não cantam só quando o sol nasce?
- Pois, antigamente era assim, por isso é que os antigos diziam que os galos só cantam quando nasce o sol.
- Então e até isso já mudou? Os galos também são modernos?
- Ó meu filho, isto agora está tudo diferente…
- Mas o sol não nasce à mesma hora, como antigamente?
- Sim, claro, isso, se mudou, terá sido muito pouco. Pelo memos desde que eu me lembro, e olha que eu tenho uma memória! Até me lembro melhor das coisas antigas do que das novas...
- Mas o galo está sempre a cantar, canta toda a noite! Quando eu estou quase a adormecer, desata aos berros, parece que está encostado às minhas orelhas e que o estão a matar! Passado um bocado estou a dormir, começa a cantar outra vez. Raio de vida. E de terra!
- A culpa não é dele. É que às vezes passam ali adiante na estrada umas motorizadas dos rapazes que foram à vila, vão lá para andarem no laró, agora anda tudo no laró, que não lhes custa a ganhar o sustento. Eu, no meu tempo…
- Ó homem, mas o que é que isso tem a ver com o galo? Que mania que você tem de estar sempre a mudar de conversa…
-  Cala-te e deixa-me acabar. No meu tempo começávamos a trabalhar mal o sol nascia, desapegávamos quando o sol se começava a por, éramos como o galo, guiávamo-nos pelo sol, trabalhávamos de sol a sol. E para ganharmos uma côdea de pão. Escola? Escola era um pau de marmeleiro pelas costas abaixo se não trabalhássemos como devia de ser. Anestesia para tirar os dentes? Anestesia era outro pau de marmeleiro pelas costas a baixo se não estivéssemos quietos e calados enquanto o meu pai me arrancava o dente com um alicate.
- Credo! Ó velho, você também não exagere. Quando você se põe a inventar...
- Inventar, eu?! Ai era assim, era, tu que pensas? Pensas que era como agora, tudo no bem bom, a canalha a estudar ou a fazer que estuda até ter idade  quase para a reforma… ninguém faz nada, ninguém quer trabalhar, olha para ti!
- Deixe lá isso. Não me fale em mim!
- Ai deixo lá isso? Ai não queres que te fale em ti? Então e tu achas normal viver à custa do teu pai, que também foi um mouro de trabalho, coitado, na França, e agora, ainda por cima, a viver à custa do teu avô, com a idade que tens? 30 anos? Com trinta anos já eu tinha...
- Pois está bem, mas você já me disse isso tantas vezes. Não vale a pena bater mais no ceguinho.
- Ceguinho? Não vale a pena, mas é malhar ferro frio, que tu mais pareces um ferro frio, uma parede de…
- Ó velho, pare lá com essa conversa que essa merda já me está a chatear.
- Cala-te tu. Ou agora também queres mandar calar os velhos? Também era só o que faltava!
- Não é nada disso. Deixe lá, pronto, não se zangue.
- Pronto…
E já agora explique-me lá isso do estafermo do galo, que eu ainda não entendi. Não entendo por que canta o galo a todas as horas e não como os outros de antigamente. *
- Mas eu já te disse. Os rapazes das motas... e às vezes algum carro, sobretudo aos fins de semana, passam na estada da vila.
- Pois, eu isso percebi.
- Porque a mocidade agora não faz nada e passa a noite inteira no laró...
- Pois, eu isso também já entendi. Porra para o velho!
- Ó Apracido, tu vê lá como falas. Olha que eu não sou surdo!
- Então está sempre a dizer que ouve mal e quando eu digo estas coisas em voz baixa, cá com Deus e comigo…
- Eu só ouço mal o que não me interessa!
- Pronto! E então ia a dizer … passam as motas, ou os carros…
- De noite. E ao virar da curva, as luzes iluminam aqui esta parte ao pé do castanheiro grande, estás a ver, ali onde está o galo, na capoeira. Percebes? Ele pensa que é o sol e pronto, começa logo a cantar! Os bichinhos têm sempre razão. Nós é que muitas vezes não a temos.
E assim se foram deitar, cada um para o seu quarto, muito cedo para não gastarem luz, como dizia o velho. Embrulhados nos cobertores e nas mantas que pesavam como pedras, na opinião do neto, e frias, que nunca tinha visto nada assim. Lá em França os cobertores são leves e quentes. Mas o velho queixava-se muito quando lá estava. Queixava-se do frio, queixava-se da comida e de tudo. E lá nem há mantas, para que servem estas mantas desta terra, pesadíssimas e geladas? Ainda a mãe dizia que queria regressar? Nem ela se daria já aqui... dizia que queria vir, que queria vir, mas nunca vinha, devia estar à espera que o velho morresse... para herdar... e para o não aturar, claro. Quem é que podia  aturar semelhante criatura? E viver naquela terra atrasada? A mãe até dizia que em Portugal não havia frigoríficos, ela chamava-lhes frigideiras, nem mulas, ela queria dizer moules, ou seja, formas para bolos, a  não ser que quisesse dizer mexilhões, que também se diz assim em francês... mas ele bem os tinha visto no Porto: frigoríficos, formas de bolos e mexilhões. Não havia nada disso naquela terra, claro. E se calhar no tempo da mãe não havia em lado nenhum, mas não... haver havia, ela é que era um bocado ignorante, mais do que um bocado, uma palerma, nem falava bem o francês nem o português, era como dizia  a professora de português lá em Champigny:
- Os vossos pais são uns ignorantes, não sabem nada, também não admira, vieram das aldeias da serra para Paris.... nem sabem falar português, nem francês, nem sabem coisa nenhuma.
Assim pensava o jovem, enquanto se aproximava perigosamente a noite de Natal, com a famosa ceia, muito recomendada e muito enfatizada pela mãe.
Nessa noite, Aparecido e o avô comeram o mesmo que em todas os outros jantares, a que o velho chamava ceias. Batatas cozidas com bacalhau e couves. Às vezes até eram só batatas e couves, outras vezes era só caldo e pão...
As batatas eram mais brancas e mais perfeitas que o habitual, a duas postas de bacalhau eram mais grossas e melhores, mais amarelas, as couves eram iguais, idas buscar ao quintal poucos minutos antes de entrarem na panela. O vinho também era a mesma zurrapa de verde tinto de sempre, produzida nos mesmos quintais, de umas videiras velhas e grossas, mas nessa noite era do engarrafado, o da melhor colheita. E o azeite... imagine-se, dizia o avô que aquele azeite era especial, até abriu uma garrafa de propósito, fez um relambório sobre o assunto, contou uma história complicada em que misturava o azeite com os tempos em que era jovem e com a falecida mulher... o neto não prestou atenção a coisa nenhuma, imagine-se, quem é que se importa com o azeite! Sobremesa, uns doces feitos de pão frito com açúcar, que não prestavam para nada, parecidos com os que a mãe fazia em França, mas ainda piores. Enfim, sempre era melhor do que nos outros dias, em que não havia sobremesa nenhuma... a não ser às vezes umas uvas no tempo das uvas, um punhado de castanhas no tempo das castanhas...
As batatas, o bacalhau e as couves cozeram lentamente na panela de ferro da lareira, enquanto os dois aqueciam os pés ao fogo, naquele dia gelado. Para o rapaz, habituado a não fazer nada, o aborrecido daquela vida nunca era a falta de atividade, pelo que ali ficou sossegado, a ouvir a chuva cair no telhado baixo e o vento a zunir no velho castanheiro. Para o velho, aquela era a única vida que conhecia e não desejava, nunca tinha desejado outra.
Comeram sossegados e foram cedo para a cama. Nada de presentes, nada de decorações de Natal, nada de rezas. O rapaz não tinha religião praticamente nenhuma, a do velho era mais superstição do que fé, nisso e noutros aspetos eram parecidos, como muitas vezes acontece com elementos de diferentes gerações de uma mesma família, mesmo se nunca houve muito contacto entre eles.
A princípio, o rapaz acendeu uma vela de cera, para o avô não protestar por ele gastar “luz”, referindo-se à eletricidade. Tentou ler uma velha revista que lhe deram durante a viagem de comboio, mas não era grande leitor e acabou por adormecer com a revista por cima da cara. Minutos depois, acordou com o galo.
- Có có-ró có-có!!!! – cantou o galo.
Acordando estremunhado, Aparecido atirou com a revista para o chão, levantou-se de vela na mão e foi discutir com o avô,
- Eu vou-me mas é embora desta terra de merda!
- Vai vai! Até já devias ter ido. Andas aqui a comer à minha custa e ainda reclamas!
.- Já quantas vezes me disse você que eu ando a comer à sua custa? Então eu não sou seu neto? Eu não sou o seu herdeiro? E não é costume as visitas comerem à custa de quem as recebe?
- Visita, tu?  Que grande visita, que tu me saíste, que já cá estás a comer há meses sem fazer nada. Herdeiro? Se eu te deixasse gastar tudo o que tu queres gastar, não ia haver nada para herdar, herança nenhuma, nem para ti, nem para a tua mãe, nem para o teu pai. Vai-te mas é deitar e deixa-me dormir a mim. Estamos no Natal, deixa-me ao menos em paz, no Natal!
O rapaz lá voltou para a sua cama de ferro, que rangia ainda mais que o habitual, por baixo do duro e áspero colchão de palha de centeio. Mas ficou inquieto, na tempestade que desabava a espaços, seguida de períodos de acalmia. Inquieto e remexendo-se constantemente, lá voltou a adormecer.
- Có có-ró có-ri có-ró!!!!
- Ai, que é isto? – pergunta Aparecido, despertando de repente, sem se lembrar já de onde estava e julgando-se em Champigny, onde não há galos a cantar durante  a noite. Acordado, acende a vela e lá fica a cismar nisto e naquilo, em velhos rancores contra o avô, contra o pai, contra aqueles conhecidos que o andavam sempre a importunar lá por França... mas a fraca luz do aposento, um raro luar filtrado pelas nuvens, que entra pela janela e o completo silêncio que se gerou após a tempestade faziam-no adormecer em pouco tempo. E assim ficou a dormir no melhor do seu sono, naquela invulgar noite de Natal. Quando de repente se ouve, como já setinha ouvido antes, tantas vezes...
- Có có-rí có-có ri-có!!!!
O quê? - Levanta-se o rapaz, desta vez acendendo a luz elétrica, corre desnorteado para a sala, acende a luz elétrica da sala, investe para cozinha, acende a luz elétrica da cozinha, nunca se viu tanta luz ao mesmo tempo naquela casa, o que faz o avô acordar atordoado.
- Que é isto, rapaz?!
- Porra! Eu é que já não aguento mais isto! Vou matar o galo - vocifera Aparecido, enquanto procura atabalhoadamente, nas gavetas e nos armários da cozinha,  a melhor faca, aquela que corta bem
- Onde é que você meteu a faca que corta bem? Amanhã temos arroz de galo.
- O velho levanta-se da cama, amparado na bengala, um pouco atordoado com toda aquela agitação que o despertou dum sono profundo, feliz e sem sonhos. Irritado, dirige-se à cozinha, gritando com o neto, que vai atirando pelo ar pratos e talheres.
- Tu está-me quieto rapaz. Tu não vês que me estás a escaqueirar tudo? Mas o que é que tu queres, ó moço?
- Vou matar o galo. Ando à procura da faca que corta bem. Você só tem uma faca que corta bem, as outras não prestam! Onde é que a pôs agora?
- Tu não te atrevas a matar-me o meu galo! Tu estás-me a ouvir?
- Ai não, então já vai ver o que é que eu lhe faço!
- Está quieto, rapaz! O galo já aqui estava quando tu aqui chegaste e ainda cá há-de ficar muito tempo quando tu te fores embora!
- É já amanhã!
- E havia era de ser ainda ser hoje! De que é que tu estás à espera? Desaparece-me daqui!
- Desapareço desapareço, ai desapareço e é já - grita Aparecido - mas antes disso vou matar o galo. E ainda o havemos de comer antes de eu ir. Não o vai deitar fora depois de morto, pois não? Lá porque gosta tanto dele...
- E gosto
- Isso sei eu! Até gosta mais dele do que de mim!
- Muito mais. Eu gosto muito mais dele do que de ti, ouviste? Porque eu a ti nem te conheço. Sei lá se tu és meu neto!
- Ai não me quer dizer onde está a faca? Então eu mato-o mesmo à mão , torço-lhe o pescoço e acabou-se!
Dizendo isto, Aparecido sai porta fora em direção à sala, na intenção de ir ao pátio matar o galo. O avô corre a agarrá-lo com força. O velho é forte, mas o rapaz, magro e ágil, consegue libertar-se, estrebuchando. Logo o avô o agarra por um braço. Então, Aparecido pega, com a outra mão, numa cadeira que ali está, levanta-a no ar e fá-la desabar com toda a força sobre a cabeça do homem. Velha e desengonçada, a cadeira parte-se em bocados, pouco mais mossa fazendo na cabeça do velho do que a luz intensa a que não estava habituado lhe tinha feito nos olhos e no espírito.
Num gesto de defesa, o homem levanta a bengala e vai bater com ela na cabeça do neto, no momento em que este se volta para trás. Atingido na nuca, o rapaz cai ao chão, fulminado. Está morto.
Aturdido com o seu ato, a princípio, não querendo acreditar no que vê, o velho dá-se depois conta da sua atual situação. Com o sentido prático que adquiriu numa vida simples e solitária de trabalhador braçal, pouco tempo demora a entender tudo e  a conjeturar o que deve fazer. Veste o seu melhor fato, põe  a gravata e o chapéu, chama os vizinhos, conta o que fez e pede que o levem à vila, de mota, para se entregar à guarda, confessando o seu crime. Involuntário.
Pouco passa da meia noite. Da janela do posto da guarda em que ficou retido como prisioneiro, até se averiguarem os factos, o velho observa, desanimado, os seus conterrâneos que saem da igreja, felizes, depois de assistirem à Missa do Galo. As crianças saltitam alegres à frente dos pais, mortas por irem abrir os presentes que ficaram por debaixo da árvore, ou dentro dos sapatinhos, ao pé do presépio ou da cama. Os adultos estão também alegres e bem dispostos, digerindo ainda a lauta ceia de Natal com as suas desusadas sobremesas e bebidas.
Naquela terra em que nada acontece nunca, os que saem da igreja são logo abordados pelos outros, ávidos de lhes contarem a grandessíssima novidade. A excitação da inusitada notícia apaga, naquele momento, qualquer sentimento de piedade ou de indulgência. Todos olham para a janela da guarda com grande curiosidade e quase alegria, pela quebra da monotonia das suas vidas, ali tão isoladas do mundo. Não há maldade na sua atitude, antes o entusiasmo de quem vê acontecer na sua terra o que só vê habitualmente e até mesmo constantemente na televisão. Falam alto, chamam um pelos outros, no desejo de contar a grande novidade aos poucos que ainda não a ouviram, enquanto o cadáver de Aparecido é transportado para a morgue mais próxima, longe dali.
Pouco depois, tudo sossega. A terra cai na tranquilidade e na harmonia das pequenas terras sem história. Chegados a casa, pouco tempo demoram a deitar-se e a adormecer, cansados de tanta excitação. Alguns transeuntes foram para mais longe, nas suas motorizadas ou nos seus automóveis. Ao passarem  a curva da estrada, a luz dos faróis incide na capoeira que fica por detrás do castanheiro velho.
O galo canta.

Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Graciete Nobre

quarta-feira, dezembro 22, 2010

A velha e a couve

Já me esquecia deste conto popular, pois os religiosos são sempre um pouco esquisitos. Vem a propósito do espírito Natalício.

Era uma vez uma velha muito avarenta, na minha terra diz-se "muito pirata" ou "muito somítica" e que não dava nada a ninguém, não dava uma esmola a um pobre, não fazia bem a pessoa nenhuma.
Um dia em que estava a lavar hortaliças no rio, fugiu-lhe uma couve e ela disse:
- Coibe, bai-te com Deus e que aproveites a quem te encontrar.
Pouco depois, morreu. Ao chegar ao outro mundo, foi para o Purgatório, mas São Pedro disse-lhe:
- Só uma vez na tua vida é que tu fizeste bem, que foi aquela história da couve. Mas eu vou-te dar uma oportunidade. Agarra-te à tua coibe e sobes dependurada nela para o Paraíso.
A velha assim fez, mas as outras almas que estavam no Purgatório, quando a viram a subir para o céu dependurada na couve, também se dependuraram nas pernas dela. Então, a velha começou a dar pontapés às outras almas, batendo-lhes com os pés na cabeça, fazendo-as cair.
- A coibe é minha!  À minha custa e à custa da minha coibe é que bós não habeis de subir para o Paraíso.
E com esta última maldade, acabou por ficar onde estava.
OH!
Moral da história: se dermos uma couve, nunca devemos depois dizer assim:
- A coibe é minha!


(Contos narrados pelo meu avô Manuel Daniel de Sousa, transcritos após a sua morte, com contribuições de várias pessoas da família. O avô contava estas historias milhares de vezes, enquanto os primos piscavam os olhos entre si, sentados em escabelos, na espreguiçadeira, ou deitados na carqueija, antes de ser queimada na lareira.
Estes contos eram inéditos, antes de terem sido partilhado neste blogue, sendo muito procurados por pessoas do Brasil.
São contos do Douro Litoral, também chamado de Entre Douro e Minho, Portugal)

terça-feira, abril 17, 2007

A mulher preguiçosa Conto popular

Um pobre homem tinha uma mulher muito preguiçosa.
Um dia, o homem disse à mulher que fizesse sempre as necessidades num cesto grande, num “gigo”, e ela assim fez.
Ao fim dum mês, o homem chamou os vizinhos todos das redondezas e mostrou-lhes, numa mão, um novelinho muito pequenino de lã de ovelha, que a mulher tinha dobado. Com a outra mão, mostrou-lhes o gigo cheio de… (vocês sabem o quê) e disse-lhes:
- Trabalho de um ano, cagança de um mês. Aqui está o trabalho que a minha mulher fez.


Moral da história: as mulheres devem trabalhar. Desculpem a má palavra, mas não ficava bem se a alterasse, porque é um conto popular do Norte. Do mesmo sítio de onde veio O Ancinho, de que todos os leitores deste blogue gostaram.

Outra moral da história: nós, mesmo quando não produzimos nada material (a esmagadora maioria), produzimos mesmo assim muita....(vocês sabem o quê).
Ver também neste blogue "O Homem preguiçoso"


P.S.: Num comentário posteriormente apagado pelo autor, perguntam-me se sou eu a autora do conto. Claro que não, já disse que é um conto popular português - apenas o redigi à minha maneira.

(Contos narrados pelo meu avô Manuel Daniel de Sousa, transcritos após a sua morte, com contribuições de várias pessoas da família. O avô contava estas historias milhares de vezes, enquanto os primos piscavam os olhos entre si, sentados em escabelos, na espreguiçadeira, ou deitados na carqueija, antes de ser queimada na lareira.

Estes contos eram inéditos, antes de terem sido partilhado neste blogue, sendo muito procurados por pessoas do Brasil.
São contos do Douro Litoral, também chamado de Entre Douro e Minho, Portugal)

quarta-feira, maio 31, 2006

Contos populares: O Ancinho

Os ditados e contos populares são às vezes comicamente antiquados: “O que não mata engorda” – quem se guia agora por semelhante ideia?
Esta história foi-me contada quando eu vivia numa pequena terra onde nasci.


Uma rapariga da aldeia, filha de camponeses pobres, foi servir para o Porto. (Noutras versões poderá ter casado com um homem do Porto, o que seria um pouco estranho).
Um dia, quando voltou a casa, vinha de tal modo chiquérrima que já não se lembrava de nada e era preciso explicar-lhe tudo:
- Ó meu pai? O que é aquela coisa ali deitada no chão e cheia de picos????!
(Cá entre nós era um ancinho, uma coisa com picos que serve para apanhar as folhas que caem das árvores).
- Ai tu não sabes o que é aquilo?
- Não, meu pai. (A rapariga até era bem educada).
- Então põe o pé em cima dos picos.
A rapariga assim fez, mas, ao fazê-lo, o cabo do ancinho levantou-se e bateu-lhe no nariz. Ao sentir aquela sensação, muito desagradável mas muito familiar, a rapariga lembrou-se logo e disse assim:
- Ah, meu pai, é um inchinho! (corruptela de lá).


Moral da história:1º- Nunca devemos fingir-nos de chiquérrimos e fingir que não sabemos o que é um inchinho. 2ª- Não devemos esquecer / renegar as nossas raízes! 3ª- Convém sabermos onde pomos os pés.
Falta de moral da história: este conto foi-me narrado de forma interactiva: eu fingia que era a rapariga e punha o pé nos picos, para nunca mais me esquecer da sensação, realmente inolvidável (parece que foi ontem). Mas só o pus da primeira vez, porque eu não sou burra!
Ora, da última vez que experimentei, com muito cuidado, o cabo não me bateu no nariz, mas sim nas pernas, talvez nas ancas, no máximo. Daqui se conclui que a rapariga era criança. Quantas histórias e quantos ditados haverá, relativos ao trabalho infantil e outras coisas deste género?
“O trabalho do menino é pouco, mas quem o não aproveita é louco”.

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(Contos narrados pelo meu avô Manuel Daniel de Sousa, transcritos após a sua morte, com contribuições de várias pessoas da família. O avô contava estas historias milhares de vezes, enquanto os primos piscavam os olhos entre si, sentados em escabelos, na espreguiçadeira, ou deitados na carqueija, a ser queimada na lareira.)