Deus é tão meu amigo!
Recordo com insistência esta frase, repetida várias vezes em tom exclamativo, por uma senhora que conheci num autocarro dos transportes públicos, em Lisboa.
E passou logo a enumerar as provas da amizade que Deus lhe dá. Depois de um dia muito cansativo de trabalho, nas limpezas em casa das senhoras ("que me tratam todas muito bem"), chegou à paragem e logo lhe apareceu o autocarro 42. Só teve de correr um bocadinho e logo o apanhou. Como tem os pés e as pernas inchados, não poderia correr muito, claro. Mas também não foi preciso. Os exemplos repetiam-se, quase todos deste género. Deus era tão seu amigo, que lhe punha sempre à frente o autocarro 42 e, na quimioterapia que andava a fazer, também nunca tinha de esperar muito tempo. Aparecia logo o 42, a colocá-la à frente de todos. Porque Deus é muito meu amigo!
Conjeturei que Deus seria muito mais seu amigo se lhe tivesse dado um Mercedes dos grandes, com motorista, ou, pelo menos, dinheiro para pagar um táxi. Talvez tenha mesmo sorrido, involuntariamente, embora tenha fingido concordar.
Como esta frase me vem frequentemente à memória, bem como a situação em que a escutei, acabei por concluir que Deus é muito mais amigo desta mulher, preocupando-se com os horários do autocarro 42 para o colocar à frente dela sempre que está com pressa, do que seria, se lhe tivesse dado um Mercedes com motorista, pois, só quando faltasse o motorista, ou na improbabilidade de o automóvel se avariar, iria ela pensar que Deus é muito seu amigo, ao passo que, deste modo, está constantemente a concluir que Deus se preocupa com ela. E que quer o melhor para ela. E, circunstância teológica não ignorável, que Deus é menos amigo e se preocupa menos com as outras pessoas do que com ela.
Tendo eu sido educada numa família católica, que esgotava os seus deveres religiosos em as mulheres irem sempre à missa aos domingos e comungarem sempre na Quaresma, estando os homens dispensados destes preceitos, dou comigo com estas lucubrações ateias. Talvez mesmo cínicas, pois os raciocínios ateus não têm nenhum sentido para os crentes. Nem vice-versa.
Nem eu sou tão ateia assim... mas Deus nunca foi tão meu amigo, ao ponto de me dar esta impressão de estar sempre ao meu lado, a pressionar os motoristas da Carris (que andam sempre atrasados), por minha causa. Voltei-me mais para o Budismo, uma religião sem Deus. E sem acreditar "demasiado".
Vem tudo isto a propósito de um artigo extraordinário que li hoje, do Padre Anselmo Borges, personalidade de admirável lucidez dentro do pensamento católico, em contra-corrente com a maior parte dos líderes católicos e também vem a propósito do livro que aconselha, escrito por um ateu.
AQUI:
Onde o padre afirma: "Tenho aqui sublinhado a necessidade que os crentes têm de ouvir os ateus, pois, pelo facto de se encontrarem fora, estão mais capacitados para se aperceberem da desumanidade, intolerância e superstição que se apoderam tantas vezes das religiões.",
Ou
"as religiões, sendo humanas, trazem consigo uma enorme herança de oportunismo, violência e miséria moral, mas são igualmente fonte de dignidade, verdade, imensa generosidade".
Ou
"as religiões, sendo humanas, trazem consigo uma enorme herança de oportunismo, violência e miséria moral, mas são igualmente fonte de dignidade, verdade, imensa generosidade".
Religião para Ateus, de A. de Botton
Ou Aqui