A mulher, nos seus cinquenta mal conservados, encarquilhados, ainda que com alguma jovialidade no vestir e na atitude, chorava copiosamente do olho negro e ao mesmo tempo gritava com o rapaz, numa voz aguda e lamentosa, repetindo sempre a mesma frase, ainda que em diferentes tons:
- Eu disse-te para tu pores o pé em cima do dinheiro! Eu disse-te para tu pores o pé em cima do dinheiro!
Já se tinha juntado muita gente a ouvir aquele monótono refrão, quando passei. Mas mais ou menos discretamente, como é costume agora em Lisboa... fingindo que tinham parado ali por acaso, a conversar com um conhecido...
O polícia, um rapagão atlético, ultrapassava de vários dedos e de vários pés a estatura das duas figuras franzinas. Não dava demonstrações de autoridade, de força ou de persuasão, não empunhava arma e sim telemóvel, parecia que iam os três a passear por ali. Os outros dois nem tentavam fugir, mas a mulher insistia, aos guinchos cada vez mais estridentes e com mais lágrimas a sair do olho negro, ou com lágrimas mais visíveis no olho negro do que no outro:
- Eu disse-te para tu pores o pé em cima do dinheiro! Eu disse-te para tu pores o pé em cima do dinheiro!
E a certa altura acrescenta uma variante:
- Eu disse-te para tu pores o pé, mas era em cima do dinheiro!
Prossegui caminho. O truque para continuar ali seria meter conversa com alguém e fingir que tinha encontrado um amigo, em cada esquina um amigo... e ficávamos ali a ouvir e a ver, meio voltados para a cena, meio voltados de lado...
Mas eu já tinha percebido tudo: os dois estavam a vender droga. Quando aparece o rapagão polícia, a mulher manda deitar tudo para o chão. O jovem, inexperiente, atira tudo, incluindo o dinheiro.
É então que a mulher lhe diz para pôr o pé por cima. Era evidente para ela: por cima do dinheiro. Mas ele pensou que a droga era mais valiosa do que duas ou três notas de 10 Euros, portanto pôs o pé em cima da droga.
Para gente sem poder algum de argumentação ( incluindo o rapagão polícia), o caso é simples: pôr o pé por cima de algo é o mesmo que tomar posse desse algo. O rapaz teria tomado posse do dinheiro se pusesse o pé em cima do dinheiro, mas em vez disso tomou posse da droga, porque pôs o pé em cima da droga.
E foram ambos presos.
- Eu disse-te para tu pores o pé em cima do dinheiro! - chorava a mulher, com lágrimas no olho negro.