Esta cabine tem uma história muito engraçada, para além de já ter sido cabine telefónica.
É agora uma cabine de troca de livros, ligada à biblioteca municipal Cinema Europa, que lá coloca alguns e que a gere, embora haja pouco a gerir. Durante alguns meses, as pessoas cumpriam as regras, trazer um livro e devolvê-lo, ou guardá-lo e substituí-lo por outro. Um dia, muito contente, levei lá uma amiga muito New Age, que levou logo uns seis ou sete livros, sem intenção de dar nenhum. Por aí, comecei a perceber que nem tudo seriam rosas, como se viu depois… também nem tudo são rosas na filosofiaNew Age, se as pessoas não se libertam assim tanto do ego, ou mesmo nada…
Com o confinamento, fecharam a cabine. Então, as pessoas, que também tinham mais tempo para arrumar a casa e precisavam de mais espaço para viver nela, colocaram uma grande caixa de plástico ao lado da cabine e continuaram com as trocas. Quando a caixa desapareceu, colocavam sacos cheios de livros. Foi então que as se começaram a alterar as regras de modo significativo: alguns pegavam logo nos sacos cheios e levavam-nos para casa.
A verdade é que não estamos em tempo de levar para casa quilos e quilos de livros, sim de nos livramos deles… até por causa dos ebooks, tão fáceis de adquirir gratuitamente e de transportar.
Quando a cabine reabriu, logo ficou com as estantes cheias e com mais sacos de livros no chão, mas, se num dia está cheia a abarrotar, algumas horas depois está vazia. Isto acontece sobretudo às segundas e sextas feiras, vésperas de feira da ladra e muitos viram sem-abrigos drogados e encherem as mochilas. Isto foi só o princípio.
De vez em quando alguém consegue libertar-se dos bens materiais e encher a cabine até ao teto, para no dia seguinte já não haver livro nenhum.
Por várias vezes encontrei pessoas a levar carradas de livros, todos com o aspeto de que nunca leram um livro na vida…
- Você vai levar isso tudo?
- Mas eu também trouxe muitos.
- Onde estão os que trouxe?
- São estes!
- Mas esses já aí estavam ontem…
Falando sobre o assunto com outros leitores, parece que alguns destes “utentes” são acumuladores, pessoas que acham muito importante ter a casa cheia de coisas, mesmo de livros, pensando que os livros valem muito, embora não valham quase nada, agora, comercialmente. Outros… uma senhora de idade muito respeitável mas com aspeto de não saber bem o que é um livro, ao afastar-me dela, intrigada, observo que se foi juntar a um drogado já entrado na idade, seu filho, claro.
Mesmo assim, a cabine cumpre a sua função: tenho descoberto nela grandes livros que nunca teria imaginado. Como em Campo de Ourique moram muitas pessoas estrangeiras, encontrei, por exemplo, uma autobiografia de uma das irmãs do Dalai Lama, em inglês, livro velho e esfarrapado que li e que ofereci à minha professora de Ioga, por me parecer a sua ideal depositaria. Agora estou a ler “ Viúvas de Vivos”, obra de Joaquim Lagoeiro sobre a emigração, muito viva e injustamente esquecida. Onde iria eu desencantar semelhante livro, se não fosse nesta cabine!
Cenas dos próximos capítulos… quem sabe? Who knows?